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quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

NA CONTRA MÃO DA HISTÓRIA STF MANDA TIRAR DO AR LISTA NEGRA DE CADASTRO DO TRABALHO ESCRAVO

Em decisão liminar o Ministro do STF  Ricardo Lewandowski manda retirar do site do MTE lista que relacionava empresas e pessoas que promoviam o trabalho escravo no Brasil


Crédito Fellipe Sampaio/SCO/STF
Por Rubens Glezer São Paulo
Por Eloísa Machado


Crédito Fellipe Sampaio/SCO/STFQuem vier a pesquisar no site do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) pela atualização do cadastro que é mantido das empresas e pessoas autuadas administrativamente por exploração do trabalho escravo encontrará links desabilitados e a seguinte mensagem: “[cadastro] retirado do site, em 31/12/2014, por força da liminar proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.209 Distrito Federal da lavra do Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, proposta pela Associação Brasileira de Incorporadas Imobiliárias – ABRAINC”.
Trata-se de uma decisão tomada no apagar das luzes de 2014, que chama atenção e merece análise não somente pelo seu conteúdo, mas também por servir de base para esclarecer os mecanismos defeituosos no processamento de ações judiciais no STF e dos poderes da Presidência do Tribunal. Este caso expõe como embates relevantes sobre direitos fundamentais podem ser prejudicados por desenhos institucionais defeituosos.
O Cadastro de Empregadores hoje é criado e disciplinado pela Portaria Interministerial nº 2/2011, em substituição à Portaria nº 540/2004 do MTE e consiste em uma listagem de empresas e pessoas autuadas por submeter pessoas em condição de trabalho análogo a escravo, tais como a privação de comida e água, supervisão armada do trabalho e criação de dívidas oriundas do uso de ferramentas utilizadas na atividade laboral. Quando essa autuação é confirmada por decisão final em processo administrativo, o nome do empregador é mantido no cadastro por 2 anos e é retirado em seguida caso sejam quitados os respectivos débitos trabalhistas e previdenciários, bem como se não houver reincidência.
A ideia do cadastro é, assim, criar mecanismos de desestímulo ao uso do trabalho escravo e oferecer informações relevantes para a sociedade e mercado: afinal, uma empresa que se vale de trabalho escravo possui um risco e uma pessoa que participa da cadeia de consumo tem o direito de saber a origem dos produtos. Este cadastro, que existe desde 2004 e possui as atuais características desde 2011, teve a constitucionalidade questionada em ação ajuizada pela ABRAINC em 22 de dezembro de 2014. Esta associação congrega as empresas da construção civil, um setor que atualmente é líder no número de autuações deste tipo. No mínimo, se trata de um setor em que a submissão de pessoas a condições análogas a de escravo é severamente problemática.
A relatoria da ação foi sorteada para a Ministra Cármen Lúcia, mas já que o Tribunal estava em recesso no dia de ajuizamento da ação da ABRAINC – frise-se no primeiro dia de recesso -, o processo foi encaminhado para a Presidência do STF, que hoje é ocupada pelo Ministro Ricardo Lewandowski.
Decidir liminarmente sobre a constitucionalidade de uma norma é atribuição dos ministros, com referendo do órgão pleno do Tribunal, ou seja, no caso do STF, essa questão deveria ser debatida pelos 11 ministros. Porém, o Regimento Interno do STF autoriza a presidência a decidir questões urgentes durante o período de recesso, sem previsão de prazo para que essa decisão seja revista pelo Tribunal. Colocar o processo em pauta depende do relator da ação e do próprio presidente. O Presidente goza de total liberdade para a formação da pauta e eventualmente sua decisão pode ser mantida sem a devida revisão pelo tribunal ad aeternum ou, como costuma ocorrer, até que não importe mais.
Diante desse cenário, a decisão é problemática no campo político, no campo do fundamento jurídico, bem como no campo de desenho institucional. Em termos políticos, com uma canetada acabou-se com umas das políticas públicas mais bem sucedidas de combate ao trabalho escravo, premiada no Brasil e em instâncias internacionais, como a OIT. Mas, além disso, há diversos aspectos técnicos que precisam ser levantados.
Há o problema do desenho institucional que dá tantos poderes ao Presidente do STF, sem agregar os necessários controles, mas ainda assim é questionável se a referida ação judicial se enquadra realmente na hipótese de urgência prevista no regimento interno, forte o suficiente para se ignorar a exigência de Reserva de Plenário e do Juiz Natural. O cadastro existe há 11 anos, sendo 4 na última redação. A ABRAINC alegou em sua petição inicial que a proximidade da data de publicação do cadastro (seria no dia 30/12/2014) fornecia urgência suficiente.  A Presidência do STF acatou esse argumento e, ademais, considerou o caso tão urgente que decidiu liminarmente sem ouvir as autoridades que produziram a Portaria; algo que o art. 10, §3 da Lei 9.868/99 permite apenas em casos de “excepcional urgência”. Ainda que esse juízo sobre a urgência da matéria seja questionável, a decisão vai contra o que já se decidiu no STF a respeito da matéria, ou seja, ofende sem maiores justificativas a Jurisprudência e precedentes do Tribunal.
Em primeiro lugar, a Presidência reconheceu uma urgência excepcional que não havia sido reconhecida pela Ministra Cármen Lúcia, que já relata outra ação contra o cadastro (ADI 5.115) e após ouvir todas as autoridades envolvidas, estava com o processo em mãos para decidir desde 18 de dezembro de 2014, mas optou a não proferir a liminar nessas condições. Principalmente, porém, a decisão que contraria o posicionamento da Advocacia Geral da União e a Procuradoria Geral da República – que atuam muito fortemente na ponta do combate ao trabalho escravo e poderiam oferecer dados imprescindíveis para a solução do caso – se opõe frontalmente ao que foi decido monocraticamente no RMS 28.488, relatado pelo Ministro Dias Toffoli, na qual questionava a constitucionalidade da Portaria 540/2004.
Nessa decisão, tomada em maio de 2012, o Ministro Dias Toffoli enfrentou argumentos da mesma natureza do que aqueles trazidos recentemente pela ABRAINC na ADI 5.209. Decidiu-se nessa ocasião que então que não era caso de inconstitucionalidade liminar do Cadastro de Empregadores porque o decreto não regulava diretamente a Constituição Federal, mas os diversos tratados internacionais de direitos humanos incorporados pelo direito nacional e nos termos de autorização expressa na CLT. Além disso, se decidiu que a condenação no campo administrativo não era fruto de prova produzida unilateralmente, mas uma imputação discutida com todas as garantias constitucionais dentro de um processo administrativo. Já a recente decisão liminar da Presidência do STF na ADI 5.209, além de ignorar a existência dessa outra ação, afirmou que se tratava de Portaria que visava regular diretamente a Constituição Federal e que a inscrição no Cadastro era fruto de uma atividade fiscalizatória na qual não há “um processo administrativo em que seja assegurado contraditório e a ampla defesa ao sujeito fiscalizado”.  A disparidade entre as duas decisões sugere que o campo decisório não pode ser o monocrático, mas de um debate amplo entre ministros, como indica a legislação e a Constituição Federal.
Ao final se trata de uma situação complexa e é importante não ter uma leitura apressada. Não se trata de criar suspeitas de uma ação judicial de má-fé ou cooptada. O problema central é estrutural e institucional: o atual regimento interno permite que em certos casos os litigantes escolham a dedo o período para que determinado ministro – eventualmente simpático à sua tese – decida sozinho a respeito de sua causa; sem que exista uma exigência para que o caso seja reexaminado com prioridade pelo restante do Tribunal. O que se tem no caso é um desenho que dá poderes extraordinários ao Presidente do STF, sem estabelecer mecanismos de controle. Em uma leitura benevolente, o Ministro deixou-se levar pela urgência fabricada pela parte, que poderia ter ajuizado a ação muito antes. Os maldosos poderão dizer que é um caso de “escolha de juiz”. Se ajuizasse antes sua ação, a ABRAINC teria que convencer uma ministra que já não havia dado a liminar, além da maioria do Plenário do STF, mas com base na estratégia fixada, precisou convencer apenas um; o único que poderia julgar casos naquele período.
Os constitucionalistas da atual geração têm centrado seus esforços de pesquisa principalmente sobre as questões de hermenêutica e de decisão judicial. Porém há um enorme campo de investigação relegado para os cientistas políticas que requer atenção dos juristas: a operação de mecanismos e desenhos institucionais em órgãos políticos e judiciais. A declaração liminar da inconstitucionalidade do Cadastro de Empregadores que empregam mão de obra escrava é um exemplo do quanto é a qualidade da democracia e proteção dos direitos fundamentais que está em jogo.
* Coordenadores do Supremo em Pauta e professores de Direitos da Pessoa Humana da FGV Direito SP

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