Em decisão liminar o Ministro do STF
Ricardo Lewandowski manda retirar do site do MTE lista que relacionava empresas e pessoas que promoviam o trabalho escravo no Brasil
Crédito Fellipe Sampaio/SCO/STF
Por Rubens Glezer
São Paulo
Quem vier a pesquisar no site do Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE) pela atualização do cadastro que é mantido das empresas e pessoas
autuadas administrativamente por exploração do trabalho escravo
encontrará links desabilitados e a seguinte mensagem: “[cadastro]
retirado do site, em 31/12/2014, por força da liminar proferida na Ação
Direta de Inconstitucionalidade 5.209 Distrito Federal da lavra do
Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski,
proposta pela Associação Brasileira de Incorporadas Imobiliárias –
ABRAINC”.
Trata-se de uma decisão tomada
no apagar das luzes de 2014, que chama atenção e merece análise não
somente pelo seu conteúdo, mas também por servir de base para esclarecer
os mecanismos defeituosos no processamento de ações judiciais no STF e
dos poderes da Presidência do Tribunal. Este caso expõe como embates
relevantes sobre direitos fundamentais podem ser prejudicados por
desenhos institucionais defeituosos.
O Cadastro de Empregadores hoje é criado e disciplinado pela Portaria
Interministerial nº 2/2011, em substituição à Portaria nº 540/2004 do
MTE e consiste em uma listagem de empresas e pessoas autuadas por
submeter pessoas em condição de trabalho análogo a escravo, tais como a
privação de comida e água, supervisão armada do trabalho e criação de
dívidas oriundas do uso de ferramentas utilizadas na atividade laboral.
Quando essa autuação é confirmada por decisão final em processo
administrativo, o nome do empregador é mantido no cadastro por 2 anos e é
retirado em seguida caso sejam quitados os respectivos débitos
trabalhistas e previdenciários, bem como se não houver reincidência.
A ideia do cadastro é, assim, criar mecanismos de desestímulo ao uso
do trabalho escravo e oferecer informações relevantes para a sociedade e
mercado: afinal, uma empresa que se vale de trabalho escravo possui um
risco e uma pessoa que participa da cadeia de consumo tem o direito de
saber a origem dos produtos. Este cadastro, que existe desde 2004 e
possui as atuais características desde 2011, teve a constitucionalidade
questionada em ação ajuizada pela ABRAINC em 22 de dezembro de 2014.
Esta associação congrega as empresas da construção civil, um setor que
atualmente é líder no número de autuações deste tipo. No mínimo, se
trata de um setor em que a submissão de pessoas a condições análogas a
de escravo é severamente problemática.
A relatoria da ação foi sorteada para a Ministra Cármen Lúcia, mas já
que o Tribunal estava em recesso no dia de ajuizamento da ação da
ABRAINC – frise-se no primeiro dia de recesso -, o processo foi
encaminhado para a Presidência do STF, que hoje é ocupada pelo Ministro
Ricardo Lewandowski.
Decidir liminarmente sobre a constitucionalidade de uma norma é
atribuição dos ministros, com referendo do órgão pleno do Tribunal, ou
seja, no caso do STF, essa questão deveria ser debatida pelos 11
ministros. Porém, o Regimento Interno do STF autoriza a presidência a
decidir questões urgentes durante o período de recesso, sem previsão de
prazo para que essa decisão seja revista pelo Tribunal. Colocar o
processo em pauta depende do relator da ação e do próprio presidente. O
Presidente goza de total liberdade para a formação da pauta e
eventualmente sua decisão pode ser mantida sem a devida revisão pelo
tribunal ad aeternum ou, como costuma ocorrer, até que não importe mais.
Diante desse cenário, a decisão é problemática no campo político, no
campo do fundamento jurídico, bem como no campo de desenho
institucional. Em termos políticos, com uma canetada acabou-se com umas
das políticas públicas mais bem sucedidas de combate ao trabalho
escravo, premiada no Brasil e em instâncias internacionais, como a OIT.
Mas, além disso, há diversos aspectos técnicos que precisam ser
levantados.
Há o problema do desenho institucional que dá tantos poderes ao
Presidente do STF, sem agregar os necessários controles, mas ainda assim
é questionável se a referida ação judicial se enquadra realmente na
hipótese de urgência prevista no regimento interno, forte o suficiente
para se ignorar a exigência de Reserva de Plenário e do Juiz Natural. O
cadastro existe há 11 anos, sendo 4 na última redação. A ABRAINC alegou
em sua petição inicial que a proximidade da data de publicação do
cadastro (seria no dia 30/12/2014) fornecia urgência suficiente. A
Presidência do STF acatou esse argumento e, ademais, considerou o caso
tão urgente que decidiu liminarmente sem ouvir as autoridades que
produziram a Portaria; algo que o art. 10, §3 da Lei 9.868/99 permite
apenas em casos de “excepcional urgência”. Ainda que esse juízo sobre a
urgência da matéria seja questionável, a decisão vai contra o que já se
decidiu no STF a respeito da matéria, ou seja, ofende sem maiores
justificativas a Jurisprudência e precedentes do Tribunal.
Em primeiro lugar, a Presidência reconheceu uma urgência excepcional
que não havia sido reconhecida pela Ministra Cármen Lúcia, que já relata
outra ação contra o cadastro (ADI 5.115) e após ouvir todas as
autoridades envolvidas, estava com o processo em mãos para decidir desde
18 de dezembro de 2014, mas optou a não proferir a liminar nessas
condições. Principalmente, porém, a decisão que contraria o
posicionamento da Advocacia Geral da União e a Procuradoria Geral da
República – que atuam muito fortemente na ponta do combate ao trabalho
escravo e poderiam oferecer dados imprescindíveis para a solução do caso
– se opõe frontalmente ao que foi decido monocraticamente no RMS
28.488, relatado pelo Ministro Dias Toffoli, na qual questionava a
constitucionalidade da Portaria 540/2004.
Nessa decisão, tomada em maio de 2012, o Ministro Dias Toffoli
enfrentou argumentos da mesma natureza do que aqueles trazidos
recentemente pela ABRAINC na ADI 5.209. Decidiu-se nessa ocasião que
então que não era caso de inconstitucionalidade liminar do Cadastro de
Empregadores porque o decreto não regulava diretamente a Constituição
Federal, mas os diversos tratados internacionais de direitos humanos
incorporados pelo direito nacional e nos termos de autorização expressa
na CLT. Além disso, se decidiu que a condenação no campo administrativo
não era fruto de prova produzida unilateralmente, mas uma imputação
discutida com todas as garantias constitucionais dentro de um processo
administrativo. Já a recente decisão liminar da Presidência do STF na
ADI 5.209, além de ignorar a existência dessa outra ação, afirmou que se
tratava de Portaria que visava regular diretamente a Constituição
Federal e que a inscrição no Cadastro era fruto de uma atividade
fiscalizatória na qual não há “um processo administrativo em que seja
assegurado contraditório e a ampla defesa ao sujeito fiscalizado”. A
disparidade entre as duas decisões sugere que o campo decisório não pode
ser o monocrático, mas de um debate amplo entre ministros, como indica a
legislação e a Constituição Federal.
Ao final se trata de uma situação complexa e é importante não ter uma
leitura apressada. Não se trata de criar suspeitas de uma ação judicial
de má-fé ou cooptada. O problema central é estrutural e institucional: o
atual regimento interno permite que em certos casos os litigantes
escolham a dedo o período para que determinado ministro – eventualmente
simpático à sua tese – decida sozinho a respeito de sua causa; sem que
exista uma exigência para que o caso seja reexaminado com prioridade
pelo restante do Tribunal. O que se tem no caso é um desenho que dá
poderes extraordinários ao Presidente do STF, sem estabelecer mecanismos
de controle. Em uma leitura benevolente, o Ministro deixou-se levar
pela urgência fabricada pela parte, que poderia ter ajuizado a ação
muito antes. Os maldosos poderão dizer que é um caso de “escolha de
juiz”. Se ajuizasse antes sua ação, a ABRAINC teria que convencer uma
ministra que já não havia dado a liminar, além da maioria do Plenário do
STF, mas com base na estratégia fixada, precisou convencer apenas um; o
único que poderia julgar casos naquele período.
Os constitucionalistas da atual geração têm centrado seus esforços de
pesquisa principalmente sobre as questões de hermenêutica e de decisão
judicial. Porém há um enorme campo de investigação relegado para os
cientistas políticas que requer atenção dos juristas: a operação de
mecanismos e desenhos institucionais em órgãos políticos e judiciais. A
declaração liminar da inconstitucionalidade do Cadastro de Empregadores
que empregam mão de obra escrava é um exemplo do quanto é a qualidade da
democracia e proteção dos direitos fundamentais que está em jogo.
* Coordenadores do Supremo em Pauta e professores de Direitos da Pessoa Humana da FGV Direito SP
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