Não quero sua piedade, quero seu remorso e seu vômito
Foto Raimundo Mascarenhas (Calila Notícias)
Não quero sua
piedade, quero seu remorso e seu vômito
Gerivaldo Neiva *
Na manhã de
ontem, 14/08, um jovem de 15 anos, M.S.S, foi morto com vários tiros na cabeça
e sua mãe informou que tinha envolvimento com drogas. Disse, também, que
residia há dois anos em outro estado e retornou quando soube que seu filho
estaria envolvido com drogas, inclusive fazendo reunião familiar, na véspera,
para saber se estava devendo aos traficantes.[1]
Em minutos, seu
corpo estava sendo alvo de fotos em aparelhos celulares e, em segundos, circulava
em redes sociais a imagem de um corpo negro, franzino, olhos abertos, a cabeça
crivada de balas e uma poça de sangue misturada com terra.
- Era um “pombo sujo”. Envolvido com drogas. Não
tinha futuro, coitado. Este é o mundo das drogas. Não tem caminho de volta. Tão
jovem e já perdido na droga. É assim mesmo. Ainda vão morrer muitos. Maldita
droga...
- Repetiam-se os comentários.
Nada se comenta
sobre sua vida, sua história, sua infância, seus pais e irmãos, sua tragédia
pessoal e familiar. Nada sobre os açoites que a vida lhe deu. O sofrimento. As
noites de solidão. Sua agonia. Sua dor e sua fuga. A busca de um refúgio para
suportar as feridas abertas da vida. A saudade do colo e conselhos da mãe. Sua
primeira droga. O primeiro cheiro de cola, a primeira dose de cachaça, a
primeira cerveja, o primeiro baseado, a primeira pedra de crack. Nada disso
importa. Agora, apenas um corpo, um “pombo sujo”...
Na tarde deste
mesmo dia, assoberbado de processos para julgar, anunciam-me que M.P. quer
falar comigo. Com urgência! O que será?
Conheço M.P,
desde quando era adolescente. Hoje deve ter mais de 20 anos. Quando adolescente,
tinha um sorriso largo e olhos brilhantes. Furtava casas e vivia sendo preso.
Cumpriu diversas medidas. Sabia apenas “desenhar o nome”. Tinha, ainda tem, forte
dificuldade de aprendizagem. Sem profissão, trabalhou descarregando cargas,
servente de pedreiro, bicos os mais diversos. Para aplacar a dor de sua
tragédia pessoal e familiar, usou álcool, tabaco, maconha e, quando chegou no crack,
não parou mais. Tornou-se maior de idade, continuou furtando para satisfazer a
dependência (gaba-se de nunca ter roubado com violência ou ameaça) e nem sabe
quantas vezes já foi preso. Em uma dessas, recebeu a visita íntima da namorada
e dessa visita nasceu a pequena V.
Hoje, M.P. não
tem mais o sorriso largo e nem o brilho nos olhos. Em contrapartida, tem o
lábio queimado do cachimbo e os dedos pretos e queimados. Sua vida não vale
nada. Não tem formação escolar e nem profissional. É um delinquente comum. “Ladrãozinho
safado”. Para coroar sua inutilidade social, é um ex-presidiário. Penso, quando
lhe cobram que trabalhe e seja “honesto”, que deveria responder: Como, senhor, se não sei ler e nem escrever
e o poder público se encarregou de me “analfabetizar”? Como, senhora, se não
tenho profissão e sou um ex-presidiário?
Enquanto a foto
de M.S.S. circulava por aparelhos celulares e fazia a festa no whatsapp, M.P.
me confessou que tinha sofrido atentado e que seus antigos fornecedores de
pedras de crack iriam lhe matar a qualquer momento. Seus olhos, pela primeira vez,
eram de medo. Quanto deve? A voz saiu trêmula de uma cabeça baixa e
cambaleante: “800 reais...”
O prefeito da
cidade, Francisco de Assis, estava ao meu lado e lhe ofereceu um emprego, em
obra de calçamento de ruas, para começar na manhã seguinte. Mesmo sem carteira
de trabalho, dá-se um jeito. Sua companheira, também assustada, ficou
encarregada de avisar aos fornecedores que agora M.P. vai trabalhar e honrar
seu compromisso.
De retorno ao
gabinete, enquanto a foto de M.S.S. continua ganhando o mundo, reconheço, sem
pudor algum, que acabei de “enxugar” mais uma pedra de gelo e que a água continua
a escorrer. Além de M.P. são dezenas de jovens, pobres e periféricos, sem
escolaridade e sem profissão, dependentes de drogas para aliviar suas
tragédias, que correm o risco de morte.
Recosto a cabeça
na cadeira, o peito aperta, respiro fundo para conter o choro e a raiva de não
entender por que as pessoas não veem M.P. e M.S.S. a partir de suas tragédias,
mas como “pombos sujos” e justificar suas mortes por isso. Por que as pessoas
usam a “droga” como causa das mortes e não entendem que elas são apenas a
consequência da dor de cada um? Por que insistem nesta política insana de “guerra
às drogas” e não veem que é exatamente a proibição e criminalização das drogas
que estão matando os meninos? Por que não entendem que não haverá, jamais, um
mundo sem drogas, mas que é absolutamente viável um mundo mais justo e
solidário e que neste mundo não se mata por dívidas de drogas? Por que não
veem, finalmente, que é a miséria, a pobreza, a enorme desigualdade social e a
falta de oportunidades que criam os tais “pombos sujos” e que a droga apenas
alivia sua dor quando o mundo lhe esqueceu?
Meus olhos
marejados, confundindo imagens no teto, vê a imagem de M.S.S. morto. Seu rosto
é inocente e sua boca, de forma sarcástica e vingativa, balbucia: não, não quero sua piedade ou compaixão. Não
quero que lamentes por mim. Agora é tarde. Quero seu remorso por ter me
abandonado, por não ter cuidado de mim, por não ter me educado, por não ter me
oferecido oportunidades. Agora, quero sua agonia, sua náusea e seu vômito azedo
e fedido sobre seu farto e gostoso almoço.
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